domingo, 26 de outubro de 2008

latência


sem título
© Sílvia Dias
(2008)


Vi-te ontem, por volta desta hora. Há quanto tempo não te via? Perdi a conta aos dias, aos meses. Morreste-me pela noite. Estava frio, tanto frio. Estivemos a escassos metros de distância. Próximo, tão próximo, que quase te podia tocar, não fosse o vidro da janela. E era apenas esse vidro que nos separava. Num início de noite estranhamente quente, estivemos lado a lado, mas tu não reparaste na minha presença. 

Pareces-me bem. O cabelo mais curto fica-te bem, alegra-te o rosto. Mudaste de óculos também. Que diferenças notarias tu em mim, se tivesses olhado em volta por um momento? Pareceu-me ver cansaço no teu rosto e tento imaginar como tens ocupado os teus dias. A verdade é que te nego a todo o instante, mas sinto falta de quem eras. E do que eras em mim. 

Deixa-me dormir. 




terça-feira, 19 de agosto de 2008

rascunho


sem título
© Sílvia Dias
(2007)


Há o refluxo estranho de quem não quer olhar. É deste lado do espelho que permaneço imaculada, o reverso não é real, mesmo que seja com ele que viva inconstantemente. Era tão mais simples se não tivesse questionado. Se me tivesse recusado a ouvir. Hoje teria paz comprada com um punhado das tuas lágrimas, medida com o peso dos traumas que terias suportado em silêncio. E seria tão mais simples.

Corro as cortinas e deixo cair o corpo pela cama. Pela cama, exactamente. Tenho o corpo aos pedaços e vai caindo conforme calha. Aconchego o rosto na planta do pé e adormeço profundamente.  


domingo, 29 de junho de 2008

nostalgia


sem título
© Gonçalo Sítima
(2006)


Era aquele o espaço das conversas profundas e ideológicas. Insuspeito, como poucos. Por ali nos sentávamos, no chão, como preferíamos, encostados a almofadas de couro que nunca foram confortáveis. Bebíamos chá e fumávamos sofregamente, baforadas quentes. Morango, pêssego, laranja. Menta, como o chá. E durante as horas que nos prendiam ao chão éramos filósofos, políticos, historiadores. Ninguém suspeitava que conspirávamos, em diálogos tantas vezes absurdos, por vezes em línguas estranhas, com termos que não existem. Ninguém suspeitava o quão profundos éramos, quão suculento era o âmago da nossa utopia disfarçada, do nosso realismo amaldiçoado. E as imagens congeladas pelos obturadores não nos servirão de prova. 

Era aquele o espaço dos devaneios intelectuais. O lar onde penetrávamos profundamente um no outro. Agora sem cortinas de fumo, mas ainda com cheiros exóticos. Agora sem almofadas no chão. E nós nunca mais voltámos, por não termos onde nos sentarmos. 


terça-feira, 3 de junho de 2008

uma casa


garden
© Sílvia Dias
(2007)


Na enfermidade dos dias que correm, decorei cada traço desconexo da linha contínua da tua existência. Não ouses encontrar-me um sentido. Estará sempre incorrecto e ultrapassado no momento em que conseguires descodificar(-me). O compasso irregular deste comboio agonia-me pela proximidade das horas. Faltam breves minutos para regressar ao casulo colorido, recheado pelo eco de risos estridentes. É o espaço onde nos torturamos continuamente, durante as horas em que dura o sol. Temos vivido da noite. Calma, generosa. Maternal. E é na regularidade rotineira dos acontecimentos que temos alimentado a ilusão de uma futura estabilidade. Uma casa. Um quarto. Uma cama para dormir. Um espaço físico chamado nós, que vá além do transcendental. Como se fosse possível. Estaremos possivelmente errados. Desejavelmente.



domingo, 11 de maio de 2008

solilóquio


em flor
© Sílvia Dias
(2006)



Gostava de dizer que te amo devagarinho, com a intensidade das primeiras vezes, num suspiro sussurrado junto ao lóbulo da tua orelha. Gostava de ter dedos para enlaçar nos teus, mas não me vejo digna de tal proeza.

Senta-te comigo na berma daquela estrada onde já não passamos mais. Vais espirrar muito – é Primavera e as cerejeiras em flor só são bonitas em postais, dir-me-ás. E depois sorrimos muito enquanto me passas o braço pelos ombros e me abraças com força.

Tens medo que não seja real?
Às vezes receio a afirmação.