domingo, 29 de junho de 2008

nostalgia


sem título
© Gonçalo Sítima
(2006)


Era aquele o espaço das conversas profundas e ideológicas. Insuspeito, como poucos. Por ali nos sentávamos, no chão, como preferíamos, encostados a almofadas de couro que nunca foram confortáveis. Bebíamos chá e fumávamos sofregamente, baforadas quentes. Morango, pêssego, laranja. Menta, como o chá. E durante as horas que nos prendiam ao chão éramos filósofos, políticos, historiadores. Ninguém suspeitava que conspirávamos, em diálogos tantas vezes absurdos, por vezes em línguas estranhas, com termos que não existem. Ninguém suspeitava o quão profundos éramos, quão suculento era o âmago da nossa utopia disfarçada, do nosso realismo amaldiçoado. E as imagens congeladas pelos obturadores não nos servirão de prova. 

Era aquele o espaço dos devaneios intelectuais. O lar onde penetrávamos profundamente um no outro. Agora sem cortinas de fumo, mas ainda com cheiros exóticos. Agora sem almofadas no chão. E nós nunca mais voltámos, por não termos onde nos sentarmos. 


terça-feira, 3 de junho de 2008

uma casa


garden
© Sílvia Dias
(2007)


Na enfermidade dos dias que correm, decorei cada traço desconexo da linha contínua da tua existência. Não ouses encontrar-me um sentido. Estará sempre incorrecto e ultrapassado no momento em que conseguires descodificar(-me). O compasso irregular deste comboio agonia-me pela proximidade das horas. Faltam breves minutos para regressar ao casulo colorido, recheado pelo eco de risos estridentes. É o espaço onde nos torturamos continuamente, durante as horas em que dura o sol. Temos vivido da noite. Calma, generosa. Maternal. E é na regularidade rotineira dos acontecimentos que temos alimentado a ilusão de uma futura estabilidade. Uma casa. Um quarto. Uma cama para dormir. Um espaço físico chamado nós, que vá além do transcendental. Como se fosse possível. Estaremos possivelmente errados. Desejavelmente.